Falar em “hinduísmo” no singular é, de certo modo, uma simplificação. O que chamamos de hinduísmo é, na verdade, um vasto oceano de tradições espirituais, filosóficas e devocionais que floresceram ao longo de milênios no subcontinente indiano. Não se trata de uma religião centralizada, com um único profeta ou um dogma fixo, mas de um conjunto vivo de caminhos que buscam a mesma verdade essencial: compreender a natureza da consciência e libertar o ser humano do ciclo de sofrimento (saṃsāra).
Para entender essa complexidade, é útil distinguir dois grandes níveis:
as correntes religiosas (sampradāyas) — focadas na devoção e no culto — e as escolas filosóficas (darśanas) — dedicadas à reflexão metafísica e ao conhecimento da realidade última.
No plano devocional, o hinduísmo se expressa através de grandes tradições que se organizam em torno de diferentes deidades, compreendidas não como deuses rivais, mas como manifestações do mesmo Absoluto (Brahman).
O Vaishnavismo é a corrente dedicada a Vishnu e às suas encarnações (avatāras), como Krishna e Rama. É uma via de bhakti — devoção amorosa — que ensina a libertação (moksha) pela entrega confiante ao divino. Seus textos principais são o Bhagavad Gītā e o Bhāgavata Purāṇa, que exaltam a união entre amor e sabedoria.
Os shaivas veneram Shiva, o Senhor do Yoga e da transformação. Aqui o foco é o ascetismo, a meditação e o autodomínio, buscando a fusão com a consciência cósmica. Do sul da Índia ao Caxemira, o Shaivismo se desdobra em escolas diversas — como o Shaiva Siddhānta e o Kashmir Shaivismo —, algumas delas de profundíssima sutileza metafísica.
O Shaktismo coloca no centro a energia divina feminina, conhecida como Shakti ou Devi. O universo é visto como a dança da Mãe Cósmica em suas formas: Kālī, Durgā, Lalitā. Essa corrente é também o coração das tradições tântricas, nas quais o corpo e a energia vital são instrumentos de libertação.
Smartismo é ais filosófico e inclusivo, o Smartismo propõe o culto aos “Cinco Deuses” — Shiva, Vishnu, Devi, Ganesha e Surya — como expressões de um único princípio supremo. Inspirado pelo mestre Adi Shankara, é a via do não dualismo (Advaita Vedānta): o reconhecimento de que tudo é Brahman.
Mais rara e antiga, a tradição do Ganapatismo é devocionalmente centrada em Ganesha, o removedor de obstáculos e patrono da sabedoria. Embora pequena, ela representa a ideia de que qualquer forma divina pode conduzir ao mesmo centro.
Além das tradições devocionais, o hinduísmo preserva um conjunto de seis escolas clássicas de filosofia (ṣaḍ-darśana). Elas não são “igrejas” ou “doutrinas rivais”, mas diferentes ângulos de visão sobre a mesma verdade.
1. Sāṃkhya – analisa a dualidade entre consciência (Puruṣa) e matéria (Prakṛti).
2. Yoga – baseado em Patañjali, oferece práticas para unir essas duas dimensões pela meditação e pela ética.
3. Nyāya – a escola da lógica e do raciocínio rigoroso, que busca a verdade por meio do conhecimento válido (pramāṇa).
4. Vaiśeṣika – atomista, investiga as categorias da existência, como substância, qualidade e relação.
5. Mīmāṃsā – valoriza o cumprimento do dever (dharma) e a força espiritual dos rituais védicos.
6. Vedānta – a culminação do pensamento védico, centrado nos Upaniṣads e na realização de Brahman como realidade última.
O Vedānta, especialmente, tornou-se a espinha dorsal de muitas correntes espirituais posteriores, desdobrando-se em diversas interpretações:
- Advaita (não dualismo), de Shankara;
- Viśiṣṭādvaita (não dualismo qualificado), de Rāmānuja;
- Dvaita (dualismo), de Madhva.
Cada uma descreve de modo distinto a relação entre alma, mundo e divino — mas todas partilham o mesmo ideal de moksha, a libertação da ignorância.
O que torna o hinduísmo fascinante é justamente sua diversidade harmônica. Em vez de uma fé uniforme, ele é uma teia de caminhos convergentes, onde o devoto, o filósofo e o meditante buscam o mesmo centro silencioso da existência.
Em linguagem simbólica, poderíamos dizer que:
"O Vaishnava canta, o Shaiva medita, o Shakta dança — e todos, ao final, reconhecem o mesmo Brahman que habita em cada ser."
O hinduísmo, portanto, não é apenas uma religião, mas uma civilização espiritual — um mapa do despertar humano.
E talvez o seu maior ensinamento seja justamente este: há muitos caminhos, mas um só Ser que caminha em todos.

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